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A mudança
Já era noite quando Marina chegou em casa. Ao final de um dia difícil, só queria tomar um banho, comer algo pois tinha fome, e cair na cama. Rezava para que o marido estivesse em um de seus poucos bons momentos. Passara o dia entre dois hospitais. Em um deles, uma das cunhadas passara por uma cirurgia. Estivera parte do dia lá acompanhando tudo. E a outra parte do dia, fora para outro hospital, onde a outra cunhada dera à luz ao primeiro filho. Eram momentos felizes e tensos – a vida lutando pra sair vencedora.

Morava em uma edícula nos fundos do quintal, sem perspectivas de uma casa própria. A casa grande era do proprietário. O marido, motorista da Companhia Metropolitana de Ônibus, gastava parte do salário mensal no bar na esquina de baixo, entre partidas de bilhar, copos de cerveja e fogo paulista. Não entendia como ele ainda conseguia manter o emprego. Passava horas pensando em como seu futuro seria. Tinha pouco mais de trinta anos e se sentia totalmente perdida.

Ao abrir o portão, percebeu que o marido estava no quintal. Estranho, pois já deveria estar dormindo. Àquela hora, bêbado, era difícil se manter acordado. Entrou e ele veio em sua direção. Nem sequer esperou pelo cumprimento. Recebeu o primeiro soco. Foi pega totalmente de surpresa - nunca lhe batera. E seguido ao primeiro, vieram muitos outros. E muitos chutes. Os xingamentos, ofensas, brados acompanhados pelos socos e pontapés. Já no chão sua única reação foi cobrir o rosto, e era lá que ele mirava os punhos! Não queria matá-la. Queria deformá-la. O vizinho abriu a porta, mas as pancadas continuaram. O marido perdera a chave. Conseguiu falar onde estava a cópia. Numa distração do homem, pulou o muro. Nem pensou em abrir o portão. Pulou e fugiu.

Conseguiu abrigo na casa paroquial. Conhecia os padres. Ficou lá horas com medo de sair à rua, pensando se o marido estaria à sua procura. Quando criou coragem, correu até a Avenida principal do Bairro pobre da Zona Leste Paulistana. No meio da noite, precisou tomar dois ônibus até a casa da mãe. No bolso somente a identidade e alguns trocados. Nem roupa para trocar levara. Aliás, nem sequer conseguira entrar na própria casa.

Além das dores, do cansaço, da fome que teimava em lhe queimar o estômago, a vergonha imensa por ter apanhado sem nem saber por quê, existia o medo – um medo profundo, profundo, paralisante – como encarar a família! E o futuro? Não tinha nada de seu! Não era nada! Não sabia nada! Não estudara, não trabalhara, não fizera nada por si mesma durante toda a vida! Também, fazer como? Aos quatorze anos, morando em uma fazenda escondida no interior do Paraná, o conhecera. Apaixonara-se, e se casara. Menina, mal sabia lavar as próprias roupas. Da vida, nada sabia. Logo nos primeiros meses de casamento, o marido querendo sair do trabalho pesado da roça, a trouxe de mudança para São Paulo. Viveram na casa dos irmãos dele, sendo maltratada pelas cunhadas. Não aguentando mais aquela vida, fugiram para a casa dos tios de Marina, e por lá encontraram abrigo. Ele conseguiu um emprego de guarda noturno de uma fabriqueta e alugou um quarto onde viveram por uns tempos. Não parava em empregos. Mudavam-se constantemente. Não tiveram filhos. E, aos vinte anos de casada, saia de sua casa como entrara – sem nada!

Passando da meia noite, bateu à porta da mãe, aterrorizada, mas sabendo-se protegida pelo menos por aquela noite. Sabia que teria que responder à uma enxurrada de perguntas, recriminações, questionamentos, mas não ficaria sem teto e comida. E quem sabe um carinho. Porém, houve algo de bom naquela noite – quem abriu a porta foi a irmã! Lógico, houve perguntas, mas poucas e leves. Trouxe-lhe uma roupa limpa para vestir, travesseiros, um cobertor e lençóis para forrar o sofá. A mãe acordou, mas a irmã a segurou no quarto. E também foi dormir. Marina passou o sábado encolhida, toda machucada, cheia de hematomas, quase sem poder se mover. No domingo cedo saiu com a irmã para pegar suas poucas coisas na casa – a irmã insistira que tinha que se separar. O irmão mais velho lhe ofereceu abrigo em casa. Não ficaria desamparada. Tinha poucas roupas, calçados velhos, alguns utensílios de cozinha. A Irmã saiu e voltou com uns sacos de algodão para por as tralhas – nem mala havia. Antes de saírem, o homem chegou. Violento. Querendo saber o que ela levava da casa. Foi preciso a interferência do vizinho que lhes deu uma carona de volta.

Muitos e muitos anos depois, Marina, parada em frente à Capela Sistina, em Roma, finalizando uma viagem pela Europa, sorriu ironicamente pensando naquela surra - ali, naquela noite, naquela agressão, começara a grande mudança de sua vida!
Fátima Batista
Enviado por Fátima Batista em 25/02/2021
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