Ponto de Vista
Estava no primeiro ano de seu segundo curso universitário. Na verdade, o terceiro se levasse em consideração o ano de Economia que havia feito há um ano. Curso de Administração de empresas de uma faculdade renomada na capital paulista, fora designada a líder do grupo Administração no trabalho de TGA, conhecido por sua dinâmica e exigência logo no primeiro ano. Já estava com vinte e oito anos, e trabalhava há mais de dez anos, por isso a designação. Tinha que revisar, acompanhar e orientar os demais colegas na coleta de documentação e montagem das planilhas financeiras para abertura de uma indústria. E, estava em período de provas!
E, nesta mesma época, enfrentava dificuldades no trabalho, uma vez que mudara de empresa há menos de um ano. Saíra de uma grande empresa, conhecida nacionalmente, para uma pequena empresa, onde fora organizar exatamente o departamento Administrativo Financeiro, e contava ainda com a concorrência um tanto desleal dos colegas do sexo masculino que não aceitavam sua presença como supervisora. Brigara muito desde o primeiro dia para impor respeito. Podia dizer que quase tivera sucesso, quase, não fosse o machismo do próprio gerente, que a contratara, que gostava de seu trabalho, mas em plenos anos de 1990 não perdia uma chance de rir com os demais colegas de suas tentativas infrutíferas de mostrar que sabia trabalhar.
Além disso, ia casar! Dali poucos meses. Resolvera, por dispor de poucos recursos, decorar o apartamento ela mesma. Já pagara o vestido de noiva, e ainda ajudava o noivo na compra dos móveis e eletrodomésticos. Como não fariam festa, consideraram que não convinha esperar que seus convidados para a Igreja lhes dessem presentes caros. Por isso, após o trabalho e as aulas na faculdade, chegava em casa e ia para a máquina de costura. Faria também a roupa para a mãe vestir no casamento. E tinha que pensar na viagem de núpcias!
Distraída sobre a costura, tem um sobressalto ao ouvir uma batida na porta. Pergunta quem é. Não ouve. Pergunta novamente. Então ouve a voz da irmã. O susto se torna maior pois sabia das duas cunhadas no hospital – uma para cirurgia e outra para o parto do primeiro filho. Naquela época não havia telefone em muitas casas na periferia, e lógico eles não eram exceção. Então já imaginou que algo acontecera com alguma delas.
A irmã, visivelmente abatida, entrou e sentou no sofá. Ao ser questionada sobre o que acontecia, numa voz sumida falou que tinha sido agredida! - Agredida por quem?! Pelo marido. Ficou paralisada. Atônita. Então, a irmã em uma enxurrada contou o acontecido.
Estava suja. Cheirava mal. O rosto inchado. Os braços esfolados, e mal conseguia sentar. Em poucos segundo apreendeu o sentido de tudo aquilo. E do futuro! E teve medo! Não pela irmã. Por si própria. Sabia que aquela agressão influenciaria seus dias de forma avassaladora. Sentou ao lado da irmã e a abraçou. Perguntou se queria comer. Se queria um chá. Não queria nada. Não perguntou pela bolsa, nem pelas roupas. Não precisava! Foi até o quarto e pegou uma muda de roupa, algumas roupas de cama e levou até o sofá. Sua costura esquecida teria que ficar para outro dia. Desligou a máquina. Desligou a luz, e ao ir para o quarto dormir, com pensamentos turvos, encontrou a mãe, no meio da cozinha, assustada. Falou rapidamente o ocorrido, e a empurrou levemente para o quarto.
Iria dormir. No dia seguinte pensaria no que fazer, mas de uma coisa tinha certeza – tinha que proteger a irmã. E mais uma certeza: sua rotina já comprometida se tornaria tumultuada.
Acordou cedo e não foi nem à aula nem se encontrar com o noivo. Caminhou até o orelhão mais próximo, ligou para ele, contou rapidamente o ocorrido, o que teria que fazer dali em diante e voltou para casa. Precisavam conversar.
A mãe, já idosa, aposentada, ficava entre os cuidados com a filha e os gastos que essa nova situação traria para o filho mais velho. Conversaram e foi taxativa – a irmã não poderia voltar para casa do marido. Conversou com o irmão mais velho, onde encontrou apoio. Conversaram com a irmã, e decidiram que ela não voltaria. Então primeiro passo seria um Boletim de Ocorrência. Enquanto os irmãos iam até a delegacia, pensou em como se reestruturar. Teria que mexer em seu próprio salário para cobrir as despesas. Faria isso.
No dia seguinte, domingo, foi com Marina até a casinha buscar seus pertences. Não havia uma mala sequer onde guardar as roupas. Foi até a feira próxima e comprou sacos de algodão alvejados. Colocaram rapidamente as roupas dentro daqueles sacos, alguns utensílios domésticos. Marina teve a ideia de esconder a arma do marido. Estavam saindo e o cunhado chegou – entrou e foi logo procurando a arma. Tentou cercá-las e tomar os sacos de roupa, mas o vizinho já idoso interferiu pedindo calma. Ele queria a arma e elas não sairiam se não entregassem. A irmã, num fraco e último ato de coragem o enfrentou e disse que falaria onde estava quando estivessem fora da casa. O vizinho se ofereceu para levá-las. Entraram no pequeno fusca, com os sacos nos braços e foram embora.
Foi a última vez que ela viu o cunhado. Sempre o vira como um irmão. Mágoa, terror, desprezo, tudo misturado. Abateu sobre ela uma imensa tristeza. Vinte anos antes vira a irmã sair, linda em seu vestido de noiva, para casar. E agora, a irmã estava a seu lado, machucada, humilhada, como um pequeno bicho assustado, a abraçar um miserável saco de roupas velhas. Pensou em chorar, mas não podia. O velho Oliveira, como elas o chamava, dirigia tenso pelas ruas ensolaradas daquele domingo. Pequeno grande homem. Enfrentou tanta raiva para salvá-las.
Os meses seguintes, até o casamento, foram em parte ocupados em preparar a irmã para um emprego. Aos domingos, ela e o noivo compravam jornais, e eles mesmos recortavam as vagas, marcavam os endereços em um guia 4 Rodas. Na segunda-feira, dava o dinheiro da passagem para que pudesse encontrar emprego. E a irmã conseguiu. E cresceu. E alçou voos para lugares distantes. Estudou, encontrou amigos, fez novos amigos, teve outros amores, viveu outras vidas.
O cunhado? Preso em uma cadeia no interior do Estado, sabe-se lá por qual razão.
Fátima Batista
Enviado por Fátima Batista em 25/02/2021