Textos

A Anciã
Quando a conheci, ela tinha provavelmente uns 87 anos. Bem encaminhada na senilidade, matriarca das boas, poderosíssima, ainda tinha domínio sobre os filhos, e sobre seus próprios irmãos, que eram muitos, e ela como primogênita falava mais alto que todos, e mesmo que não gostassem, sempre lhe davam razão.

Nascida no sertão da Bahia, no início do século 20, lá pelos seus treze, quatorze anos ia para o garimpo com o pai, para as roças de arroz nos brejos, descalça, somente com seus vestidinhos rotos e o chapéu de palha na cabeça. Nas festas dos dias Santos, era obrigada a carregar no lombo os irmãos mais novos – azar se era a mais velha! Assim era a vida. Não aprendeu bordar nem tecer – a mãe não tinha paciência. Preferia ensinar seu ofício às filhas mais novas, já que o pai, por falta de meninos, a levava para o trabalho braçal.

Teve lá seus namorados. O rapaz chegava em casa, sentava-se no banco de madeira na sala mal iluminada pelo candeeiro, e lhe serviam uma tigela de café - isso mesmo. As xícaras antigas, meio rachadas, meio descascadas, eram tão grandes que mais pareciam terrinas de sopa. O pai sentava em frente ao rapaz para conversar, e a mãe, com o bordado na mão, sentava na porta do meio, que separava o ambiente do resto da casa para impedir que a moça viesse à sala, olhar para o rapaz – era chamada somente no momento de servir o tal café, pelando de quente.

Lá pelos dezoito anos, o pai já sem trabalho na Bahia, trouxe a família para o interior do Estado de São Paulo – trabalhar na fazenda, e a filha continuava sendo seu braço direito, mesmo com os meninos em idade de trabalhar. Ela nunca foi à escola. Seus irmãos, sim. Mas ela não. Não houve tempo, não houve vontade dos pais, não houve empenho. Ela aprendeu sozinha, com as vizinhas, às escondidas! Afinal, precisava escrever cartas para os namorados. E ela gostava de namorar! Mesmo à distância, sem nunca pegar na mão, mas no olhar. Ah, o olhar dizia tudo!

Casou-se! Teve seus próprios filhos. O marido, nunca a levou para a roça. Para ele, mulher era delicada. Devia trabalhar só em casa, cuidar dos filhos, da roupa. Nada de roça para ela. Mas o marido também não se importava muito com as questões de estudos – nem para ele nem para os filhos. Ele aprendeu ler e escrever. Sabia fazer contas. Ninguém lhe passava a perna, mas não precisava ir à escola. Mas ela sabia! Ela sabia que seus filhos precisavam ir à escola – ler e escrever. Ela não queria que suas filhas tivessem que pedir a alguém para escrever cartas para os namorados. Era muita humilhação! Ela queria que suas filhas escrevessem suas próprias cartas! E assim, com muito custo, conseguiu que seus filhos fossem à escola.

E essa senhora, quando a conheci, poderosa e orgulhosa, pobre como muitos, dizia que seus filhos eram “doutores”, e dizia isso com um orgulho imenso. Mesmo sabendo que eles não eram de fato doutores, para ela, eles eram! Eram tudo que tinha, e não queria mais nada na vida. E eles sabiam que só se transformaram em pessoas de bem, conscientes de seu credo, sua orientação, sua ideologia graças ao esforço daquela grande mulher.
Fátima Batista
Enviado por Fátima Batista em 05/10/2021
Alterado em 05/10/2021
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