30 dias escrevendo - Segundo
Algo que te contaram e você nunca esqueceu
Sou colecionadora de histórias – tristes, felizes, contemporâneas, passado, presente. Ouço, pareço esquecer, mas ficam guardadas. Um dia elas voltam. Pessoas me trazem suas histórias. Contam-nas sem pudor. Aqui elas ficam devidamente armazenadas.
Um dia, há quase trintas anos, tendo um problema de saúde, fui a um consultório na Avenida Paulista, na época o coração financeiro de São Paulo. Entrei, sentei-me e aguardei. Não sou do tipo de pessoa que puxa conversa com estranhos. Estou sempre com um livro à mão. Sento-me e leio. E naquele dia não fugi à regra. Após um tempo aguardando percebi uma senhora, com duas lindas meninas, sentadas nas cadeiras em frente à minha. Olhavam-me. Não me restou alternativa senão sorrir-lhes. Este foi o sinal que faltava para o início da história.
Primeiro perguntou qual era meu problema. Naquela época, sempre que alguém fazia essa pergunta, ficava constrangida em contar, uma vez que nem mesmo eu sabia qual era. Então disse que precisava trocar os óculos. Assim aquela senhora, talvez poucos anos mais velha que eu, começou sua narrativa.
Disse que fora até lá para examinar os olhos da filha mais nova que estava com dificuldades na escola. Contou que quando moravam no Nordeste isso não acontecia. Por educação, perguntei de qual cidade era originária. Contou-me ter chegado a pouco tempo de Fortaleza. Olhou-me profundamente e então percebi a imensa tristeza em seus olhos. Não consegui desviar os meus. Fiquei a olhar para ela, enquanto narrava uma história tão comum, mas tão profundamente triste.
Contou-me que era casada com um excelente marido e tinha as duas filhas. Moravam em uma bonita casa, próximo à praia, e que era incomensuravelmente feliz. Contou-me de sua felicidade ao conhecer e casar com o homem de seus sonhos. Contou-me sobre os primeiros anos do casamento. As viagens que faziam. Tinham ido à Europa. Mostrou-me uma pequena foto de ambos frente à Torre Eiffel. Ele era engenheiro em uma grande empresa e a vida seguia como um conto de fadas.
Três anos depois, veio a primeira filha. Foi para coroar aquela vida feliz. Dois anos depois veio a segunda filha. Dois anjos. No tempo certo foram para a escola. Eram boas alunas. Os sogros eram verdadeiros pais. E tudo seguia perfeito. Nesse ponto uma lágrima escorre pela face. E nesse momento vejo a imensa fragilidade daquela mulher. Percebo a tristeza que assola sua alma. Infelicidade. Pura e dura infelicidade. É tão palpável aquela aura de tristeza que estendo minha mão e toco a sua. Ela segura minha mão e me aperta os dedos. Os seus estão gelados.
Fiquei ali paralisada a ouvir seu triste relado. Seu marido fora convidado a vir para São Paulo para conhecer a Matriz da empresa onde trabalhava. Ficou por aqui dois meses. Em seguida voltou para Fortaleza. Avisou-a que se mudariam para cá. Quis preparar a mudança, mas ele não deixou. Disse que comprariam tudo aqui. Ao chegar, instalou-as em um pequeno apartamento, comprou uns poucos móveis, colocou as filhas em uma escola, e informou a ela que a partir daquele momento estavam separados.
Sem entender absolutamente nada, quis saber o que estava acontecendo. Em poucas palavras contou o intenso romance que passou a viver assim que chegou a São Paulo, e que fora para Fortaleza somente para buscá-las. A cada quinze dias ele passava no prédio, sem descer do carro levava as filhas para um passeio. Nesse momento sua foz treme novamente, e a filha mais velha, do alto de seu sarcasmo infantil fala: já vai chorar novamente! Agora ela só chora. Antes ela sorria!
Tenho vontade de abraçá-la, mas a porta se abre e sou chamada para minha consulta. Saio da minha consulta e ela está lá, sentada com as mãos no colo, cabeça baixa. Toco em seu ombro e lhe desejo uma vida melhor. Ela me olha agradecida e vou embora. Tomo o elevador, e lá dentro um homem de meia idade me sorri cheio de charme. Lanço-lhe um olhar e percebo que ele se encolhe. Tenho vontade de bater nesse pobre homem – penso que se talvez este apanhasse, o outro, aquele que tirou sua esposa de um lugar que lhe era caro, que lhe era confortável, que era seu lar, onde era feliz para deixá-la abandonada onde não havia um amigo por perto, sem amor, sem esperança, sentiria a força das minhas mãos em sua cara.
As vezes penso naquela mulher. Já se passaram quase trinta anos. Como estará? Feliz? Quem sabe. Talvez tenha encontrado um norte em sua vida. Espero que sim.
Fátima Batista
Enviado por Fátima Batista em 06/06/2025
Alterado em 06/06/2025