30 dias escrevendo - oitavo
Conte algo que nunca disse a alguém
A escada rolante
Sou capiau. Posso até ter me revestido de urbana, mas aquele pó vermelho que habitava a alma quando criança nunca foi embora.
Por volta de 1976 ou 77 meu tio veio em nossa casa no Bairro de São Mateus, quase ponta da Zona Leste Paulistana e nos convidou à passear.
Aquilo era extraordinário, pois sair de casa naqueles tempos era raro. Não havia dinheiro. Não havia quem quisesse levar, e gastar os minutos de um sábado ou domingo entre quatro paredes era desesperador.
Saímos. Meu tio, meu irmão mais velho, minha mãe e eu. Fui eufórica pensando em que lugares maravilhosos iríamos, e quem sabe, que doces comeríamos. Nos pés o velho sapato encardido do barro da rua sem asfalto. Roupas fora de moda e baratas. Na bolsinha ia só a carteira de trabalho, documento obrigatório naqueles tempos. RG só viria mais tarde. Um lenço e mais nada. Nenhum centavo pra contar história.
Tomamos um ônibus velho que sacolejou por horas até a Praça da Sé. Lá vimos a fonte e pessoas jogando moedas. Na bolsinha não havia nenhuma que pudesse jogar.
Então meu tio nos convidou para um passeio de metrô. Aquilo parecia ser o máximo. Entramos na estação que é subterrânea e lá estava ela: a escada rolante. Meu irmão e meu tio saíram disparados e entraram na danada. Não me restou alternativa. Fui também, mas como entrar naquela coisa que rolava continuamente? Eles embaixo chamando e minha mãe atrás com olhos arregalados com medo da coisa. Na completa falta de opção, enchi-me de coragem, agarrei-me ao corrimão e pus o pé. O outro ficou para trás. Não queria se desprender do piso firme. Quando o espaço entre o pé direito e o esquerdo ficou maior que as pernas, milagrosamente consegui mover o danado do pé para o degrau. Olhei para trás e vi o pavor estampado no rosto da minha mãe.
Tomamos o metrô por umas duas estações, voltamos para a Sé e de lá para São Mateus. Não houve lugares bonitos nem docinhos. Só a Escada Rolante.
Só entrei novamente em uma escada rolante em 1982, por conta de um tumulto no centro da cidade. Aí perdi o medo. Mais ou menos. Até hoje quando olho para uma, penso que ela está a rir de uma menina capiau.
Fátima Batista
Enviado por Fátima Batista em 24/06/2025
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